quarta-feira, 12 de novembro de 2008

A deficiência está no coração (depoimento de uma professora feliz)

Todas as escolas públicas no Brasil são inclusivas. Pelo menos, teoricamente. E isso porque há uma nada sutil diferença entre apenas ter matriculado um aluno com Necessidade Educacional Especial (NEE) e dar atendimento adequado a este aluno. E lá na escola não é diferente.
Recebi na minha turma, no início do ano, um aluno com síndrome de down. Eu, a mais inexperiente e insegura professora da escola. Eu, a professora que a Didi odeia. Eu, que me formei há dez anos e nunca pisei numa sala de aula, desde então. O pavor que me tomou quando soube da novidade foi tão grande, mas tão grande, que chorei quando cheguei em casa aquele dia. Minha preocupação era pedagógica. Como iria me comunicar com uma criança que não fala? Será que ele me entenderia?? Nunca estudei nada sobre E.E e minha cabeça fervilhava de perguntas sem resposta. Não tinha ninguém na equipe pedagógica que me auxiliasse. Tudo o que sabiam fazer era apontar minhas falhas. E isso não ajudava em nada. Chorei várias noites, liguei pra Dona Mãe um sem número de vezes (ela é aprendiz de psicóloga e está fazendo TCC sobre E.E.) pra pedir ajuda, procurei artigos na internet... Me virei como pude. Mas ainda estava com muito medo de ser uma péssima professora para aquele menino. Cheguei a pensar, e dizer, que era uma forma de punição, que ela - a Didi - tinha feito isso pra me ver falhar e poder ter um motivo pra me tirar da equipe. E, não poucas vezes, pensei em desistir de tudo, antes que ela tivesse êxito na empreitada.
A relação com o aluno? Não existia. Por conta da falha genética, ele tem algumas limitações: não fala, não tem muita coordenação motora, usa fraldas, dorme mal... E, quando chegou na escola - o primeiro contato dele com crianças "normais" que não eram da família - era arredio. E por conta do provável medo que teve daquele universo novo, até um pouco agressivo. Eu não conseguia me aproximar, gostar dele. Ele destruiu minha sala. Rasgou a decoração toda, jogava água pra todo lado, comia os brinquedos, fugia da sala todo o tempo, batia nas crianças, mordeu uns quatro (inclusive a mim), quebrou porta, destruiu trabalhinho das crianças... Era tão desgastante que não via condição de gostar dele.
Para minha sorte (só depois pude ver dessa forma), a auxiliar que trabalhava comigo era idosa e resmungona. Ela não gostava dele e o tratava com desprezo. Apesar de ser função dela, reclamava todas as vezes que precisava dar banho nele (as outras crianças não tomam banho na escola). E pra não ter mais que ouvir reclamações dela, ou da Didi, um dia quebrei o hábito e fui eu mesma fazer isso - com o estômago embrulhadíssimo (não tenho filhos, logo, não sou acostumada a fraldas sujas), um pouco de nojo e raiva, mas fui. A partir desse dia passei a ser responsável pelo banho dele. E foi nesse momento que as coisas começaram a mudar. A gente passou a interagir. Ele passou a gostar de mim e eu, dele.
Quando começou o segundo semestre, algumas modificações na escola me deixaram mais feliz e me deu novo ânimo pro trabalho. Embora, tal qual a antiga, a nova auxiliar não goste dele e o trate com um certo desprezo, ao menos ela me dá suporte pedagógico com o restante da turma. E isso facilita meu trabalho com ele. Tenho tempo de sentar ao lado e ensinar com calma, brincar, conversar. Nosso afeto cresceu. Ele sente saudade nos finais de semana e reclama se eu saio da sala na hora dele dormir. Eu sinto saudade quando ele falta e faço questão de não deixar faltar lenço de papel pra limpar o nariz que está sempre escorrendo (sempre mesmo, tanto que até é ferido já). E foi por isso que percebi o quanto ele desenvolveu. Por causa de um nariz que escorre. Eu sou alérgica e estou sempre com lenço de papel por perto. Com dó do nariz dele, passei a usar meus lenços com ele também. E qual não foi minha surpresa quando, um dia, ele puxou um lenço da caixa e apertou meu nariz - como faço com ele - e depois o dele. E desceu do meu colo e jogou o papel no lixo (já falei aqui que sou tipo a Monica Geller??). Quando voltou, viu que minha barriga estava aparecendo, e então fez "besourinho" em mim, como faço com ele todas as vezes depois que dou banho. Desde esse dia, comecei a observar melhor o comportamento dele. E vi o quanto meu menino desenvolveu. Ele faz tudo o que os outros fazem: canta, dança, come, rabisca, fala, brinca, birra, carinho, drama..... E me faz rir muito.
Hoje, fazendo o relatório de avaliação final das crianças, me detive no dele e sorri um sorriso largo ao ver o progresso que fizemos neste ano. Fizemos, porque eu progredi muito mais do que poderia supor. O medo que senti no início do ano deu lugar a um imenso prazer de ter sido a primeira professora dele. A angústia de não ser eficiente deu lugar a uma desmedida satisfação de ter sido útil. A neura de estar sendo punida foi trocada pela gratidão dessa experiência maravilhosa. Achei que teria muita coisa pra ensinar, mas tive muito o que aprender com ele. Só de pensar que posso não ser professora dele no ano que vem, me dá tristeza. Quero ir até o fim acompanhando o progresso da minha onça.
Ele é o xodó da turma. E no meu coração, só perde pro Amor Infinito.

7 pitacos:

Jullyane Teixeira disse...

Adorei o texto, suas experiências com as crianças são maravilhosas e sempre dão lindos textos aqui! Parabéns!

MEL disse...

Oi,

Venho acompanhando seu blog faz algum tempo, e essa é a primeira vez que posto aqui.
Gosto muito da sua forma de escrever e narrar as histórias.
Devo dizer que seu universo com as crianças é muito gostoso de ser lido e apreciado. Muito enriquecedor também.
Parabéns pelo empenho. Fico feliz por você ter se superado.
Vou passar sempre por aqui e já te linkei no meu blog para te acompanhar sempre.

Beijos,
MEL

Madame Mim disse...

Faço trabalho voluntário há mais de 15 anos e já trabalhei em instituições para crianças especiais, não apenas com síndrome de down, mas tbém outras deficiências.
É uma pena que as escolas tradicionais não possuam, a maioria, treinamento para os professores lidarem com essas crianças.
Quando a gente vai trabalhar em alguma instituição, é obrigatório passar por um treinamento.
Por isso acho um absurdo o Estado não preparar professores das escolas públicas para atenderem essas crianças.
Que bom ler sobre como vc sanou isso sozinha.
Parabéns pelo seu trabalho.
Essas crianças tem um jeito de amar que vc não acredita.
Obrigada pelo post.
beijos!

Anônimo disse...

Owwwnnnn... Minha domadora de onças favorita...rs.

Teu texto me fez chorar, bicha. Sei o quanto você gosta dessa oncinha em particular e torço muito pra outros como ele - além dele próprio, claro - terem você ou outras como você de professoras mais vezes.

Quem sabe a gente um dia, amiga, consegue mudar o nosso mundo e ajudar outros a fazerem o mesmo e assim, começar a mudar o mundo inteiro?

"Que vamos fazer na nossa próxima noite, Cérebro?"
"Tentar dominar o mundo!"

rs

Te adoro, amiga. Voce ainda me ama?
rs
Beijos

Kika disse...

Estou sem palavras. Adoro seu blog! Você é uma pedagoga como poucas.
Beijos!

Anônimo disse...

Lindo relato!
E quem disse que nós, professores ganhamos pouco? Nessas horas o tempo pára e torna a passar beeem devagar e aí, nós viramos aprendizes e eles, professores. É quando acontece o mais belo momento da aprendizagem: professor e aluno se confundem e se tornam um só.
Bjks

Anônimo disse...

vc quase me tirou lágrimas...
adorei o texto!
tem certas coisas q acontecem pra nos trazer mais experiência.
parabéns pelo progresso.
feliz natal e excelente 2009!

 

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